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Moral da história: Um narrador intrometido

Outro dia estava revisando um conto para a Trasgo. Uma boa história, com questionamentos interessantes, mas o narrador mais atrapalhava do que ajudava. Veja só:

“O público desprezível vibrava toda vez que o sangue jorrava dos gladiadores, graças à nova lei que promovia entretenimento vil aos cidadãos.”

Há duas palavras aí nesse trecho que funcionam como ruído. Dois adjetivos, claro: “desprezível” e “vil”. Eles me forçam a ver aquele cenário com um único olhar. É como se o narrador fizesse muito esforço para me dizer “olha como os cidadãos são crueis”, em vez de apenas mostrar a cena e deixar que eu chegue às minhas próprias conclusões. Não subestime o leitor. Cortar essas duas palavrinhas pode dar uma nova dinâmica:

“O público vibrava toda vez que o sangue jorrava dos gladiadores, graças à nova lei que promovia entretenimento aos cidadãos.”

A leitora vai chegar à mesma ideia — que os cidadãos são sanguinários —, mas chegará a ela por sua própria lógica, vai construir essa percepção na cabeça. E isso torna um texto muito mais vivo, mais interessante. Mostrar a cena como cotidiana, banal, pode ter um impacto muito maior. “Como é que eles aceitam isso com naturalidade, gente?!”

Adjetivar (ou adverbiar) em excesso é um erro comum quando começamos a escrever. Pensamos que aquela cena não está com impacto o suficiente e “temperamos” com adjetivos para aumentar a força, mas o efeito é contrário. Claro, há momentos em que realmente é preciso aumentar o impacto, mas se você gastar os seus adverbios em cenas mais fracas, como vai destacar a cena dramática?

Alguns mais atentos já perceberam que estou construindo sobre uma das regras básicas da narrativa, o tal “mostre, não conte“. Não custa repetir: em vez de contar algo, um sentimento, por exemplo, mostre uma cena que o apresente. Não diga que a Rafaela era apaixonada por Bia, mostre como Rafaela seguia Bia com os olhos, oferecia-se para carregar seu material e uma vez empurrou o menino que a elogiara no meio do pátio do colégio.

Existe um truque clássico na contação de histórias, conhecido como “o truque do cachorro“. Se você quer fazer o público se apaixonar pelo seu herói ou mostrar que o vilão também tem seu lado bom, você coloca uma cena onde ele agrada um cachorro, onde ele divide a comida com um cão de rua ou salva um filhotinho.

Por outro lado, se você quer mostrar o lado mais negativo de um personagem, reforçar a vilania ou gerar antipatia instantânea, é só chutar um cachorro. Funciona sempre. Como esse truque é velho, talvez você tenha que inventar seu próprio cachorro.

Certo, então até agora estamos dizendo que o narrador não deve emitir opiniões, apenas mostrar as cenas para que o leitor as crie por si próprio. O máximo que ele pode fazer é caprichar no enquadramento, certo?

Sim e não. (Eita, de novo? Não vai ter um único artigo onde a regra se aplica sempre? NÃO.) 🙂

Quando você trabalha com o narrador-personagem, é natural que aquela visão de mundo penetre no texto todo, como um filtro. O personagem quer nos convencer de algo, e isso pode ser usado a favor do texto. Se for trabalhar com narrador-personagem, é preciso determinar duas coisas: primeiro, que ele tenha personalidade, que essa personalidade se mostre no texto. E segundo, para tornar a narrativa mais interessante, que esse ponto de vista não seja muito simples, deve incomodar o leitor ou gerar conflitos à trama.

Pense em Dom Casmurro, por exemplo. Sua opinião é o que mais importa no livro inteiro. Dom Casmurro tentará convencer a leitora com todas as suas forças, enquanto ela tentará manter uma desconfiança saudável do narrador, e é nessa queda de braços que está a riqueza da obra.

Outra forma de inserir a opinião do narrador de forma interessante no texto é com humor, principalmente voltado à ironia, o que também se liga à personalidade do narrador-personagem.

“O público vibrava toda vez que o sangue jorrava dos gladiadores. Eu preferia as fileiras do fundo, jamais mancharia meu terno italiano com sangue impuro.”

Além do humor, você também pode quebrar a expectativa do leitor, bater de frente com o lugar comum.

“O público vibrava toda vez que o sangue jorrava dos gladiadores, graças à bela lei que promovia entretenimento honesto aos cidadãos.”

Chegando ao final, resista à vontade de escrever a moral da história. As ideias precisam pertencer ao texto, não a uma interpretação posterior. Há quem aceite uma moral em fábulas e histórias infantis, sou da opinião de que se for realmente necessário, você pode inseri-la com sutileza na fala de um personagem ou dois.

Frase do dia: Home-office não tem ar condicionado mas tem sorvete!

Foto: shizhao via Compfight cc

Publicado em Literatura Redação no dia 9 de dezembro de 2015

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2 Comments

  1. Marco de Sousa Marco de Sousa

    Eis algo que somente a prático pode tornar comum. Mas os primeiros textos estão sempre cheios dessa forçação de barra. Ainda bem que já estou me livrado desse vício.

  2. Deo Deo

    Oiie tudo bem? Adorei o assunto. Gente estou adorando o colchão novo que ganhei dos meus parentes. Tem massagens muito boas kkkk. É esse aí http://ocolchaomagnetico.com.br Alguém já comprou esse? Cuidou até de a rinite.

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