Sempre que faço um intensivo de avaliação de contos da Trasgo percebo alguns erros simples que se arrumados fariam bastante diferença na leitura e fluidez do texto. E outros detalhes que me fazem atirar o lápis contra a tela do computador.
Hífen não é travessão
Existe um motivo para os sinais gráficos existirem. Você não usa & no lugar do travessão. Você não usa @ no lugar de travessão. Então por que raios você acha que pode usar o hífen?
– Isso é um hífen, e isso não é um diálogo.
— Agora sim estamos falando.
Ah, mas que chatice, qual o problema do hífen? Ah, mas qual o problema de comer com os pés em cima da mesa? Nós não somos selvagens, esse é o problema. Ok, deixa eu explicar: hifens existem no meio do texto, veja só! Então eu também não consigo usar um “procurar e substituir” e trocá-los todos, ou corro o risco de ficar com bizarrices como “abri—lo” ou “fazê—lo”.
Então vamos combinar: use o travessão, ok? Ou duplo hífen, que também facilita na hora de substituir tudo. A propósito, o Word costuma substituir duplo hífen por travessão. Ou você pode apertar “alt 0151” no Windows, coisa linda.
Faça eu me importar com alguém
A maioria dos textos é rejeitado quando eu chego ao final da primeira ou segunda página pensando “por que raios eu estou lendo este conto?”. Não, não, não! A esse ponto eu já deveria estar preocupado com alguém. Com um personagem em apuros, alguém que está no lugar errado na hora errada, um conflito prestes a estourar. Se ao final da segunda página você ainda está explicando a geopolítica do seu cenário, tem algo muito errado com o seu conto.
Sentimentos! Eu quero sentir alguma coisa! Raiva, pena, esperança, alegria, tristeza. Dane-se a origem do conflito entre os Krugs e os Blobs, eu quero saber daquele Blob que só quer conseguir chegar em casa a salvo hoje.
Uma variação comum é começar com o soldado na batalha, que só quer chegar em casa a salvo (ok, começamos bem). Então ele começa a refletir sobre a banalidade da guerra e dá-lhe páginas e páginas explicativas da origem da guerra, cenário político, contextos e mais contextos. Zzzzz.
Não é difícil. Personagem + motivação + obstáculo. Receitinha de bolo.
Eu não ligo para os seus índios genéricos
Por algum motivo (talvez por que eu tenha reclamado demais de fantasia europeia escrita por brasileiros) comecei a receber muitas obras com contextos indígenas. O que é bom!
O que não é bom é que metade desses índios parecem tão autênticos quanto a tribo do Papa-Capim. Sério, gente, se você vai escrever sobre outra cultura, o mínimo a fazer é pesquisar sobre ela. Não adianta colocar uma tanguinha e um cocar num branco e transformá-lo num “índio” (e índios brasileiros não usam tanga e o cocares têm significados simbólicos importantes).
Existe uma boa intenção aí, mas é preciso se aprofundar na relação daquela tribo com os espíritos e lendas da floresta, de como elas moldam a visão de mundo daquele povo. Dizer que “eram apenas histórias que ouvíamos do cacique” é bastante raso. Também porque “cacique” não é um termo indígena, mas um termo que os brancos usavam para denominar os líderes.
Enfim, estou reclamando aqui da demonstração dos indígenas, mas isso vale para qualquer cultura representada: faça a droga da lição de casa.
Corte o seu próprio texto
A Trasgo recebe contos de até 8 mil palavras. Não raro recebemos material com mais de 6 mil, alguns bem próximos do limite. Avaliar, revisar e trabalhar com o material recebido dá trabalho. Quanto mais próximo do limite de palavras, melhor tem que ser o seu conto.
Veja bem, um conto de oito mil palavras vai dar o dobro de trabalho do que um de quatro mil. Então é bom que valha a pena!
O maior problema dos contos recebidos é excesso de material. Explicações demais, adjetivos demais, cenas desnecessárias (uma das frases que mais coloco na leitura crítica é “isso não é importante”). No conto cada palavra tem que mover a história adiante, cativar, provocar a personagem e a história. Tudo bem que você construiu uma space opera complexa, uma trama política intrincada com várias raças disputando o poder e tal. Jogue isso para o cenário, vai ficar ótimo.
Não traga o cenário para o primeiro plano. A leitura fica arrastada e tediosa, rouba o espaço da protagonista. Imagine que você vai ao teatro. O cenário é lindo. Uau! Mas metade do tempo da peça é apenas uma luz passeando pelos detalhes do cenário de gesso. Chato, não? Na literatura é a mesma coisa. O cenário é encantador, mas são as personagens que merecem os holofotes.
Aprenda a descrever mulheres
Ok, eu entendo que você quer dar representatividade à trama. Afinal, eu já disse que tenho rejeitado cenários só com homens. Mas, pelo amor de Afrodite, ao colocar uma mulher na trama, descreva-a como os outros personagens. Fale do seu temperamento, fale até da sua armadura, mas nunca descreva-a sensualmente à toa.
O anão era baixo e rabugento. O ladino era alto, esquio, de olhos castanhos e passos silenciosos. A elfa usava uma armadura prateada que só não era mais bela que seus olhos de fada, os longos cabelos negros a escorrer pelo corpo escultural, os seios firmes num amplo decote, magra, sensual, odiava usar calças, preferia um micro-bikini, andava rebolando, etc.
Se esse povo descrevesse os homens como descrevem as mulheres, daria nisso aqui, ó:
Assertividade, por favor!
“E o seu medo de ter medo de ter medo não faz da minha força confusão…” Eu canso de ler incertezas nos textos enviados à Trasgo. A começar por expressões com dupla negativa, como “não hesitou em”, ou “não pode deixar de…” Gente!
“Ela não hesitou em dar-lhe um beijo”. Se ela não hesitou por que tanta palavra? “Ela deu-lhe um beijo de supetão”, porque beijo bom não tem essa insegurança toda no texto.
Outro problema é quando o autor está inseguro, e isso passa para o texto. Coisas como “ela não sabia se estava chocada ou feliz com a notícia” ou “ele estava apavorado e confiante” (sério, já escreveram isso). Escolha um e conte a história, porque a indecisão não é da personagem não.
Ok, há espaço para incerteza, mas, assim como os advérbios, precisam estar naquele lugar certinho, bem encaixada. Assim como as outras dicas daqui. Você é você, claro. Mas pense com carinho nisso, e faça um editor feliz.
E travessões, não hífens. Sério.
Olá! Gostei das dicas. Você sabe mais ou menos a porcentagem de homens e mulheres que enviam contos pra revista? Parece que tem muito mais homens, por causa da dica sobre descrição de personagens femininas (imagino que esse erro seja mais cometido por homens).
Olá, Wlange! De fato nós recebemos muito mais contos de homens. Em geral mais de 90% dos contos enviados para a revista. Estamos tentando mudar isso, atrair mais mulheres escritoras para que enviem contos para a Trasgo.
AMEI o texto rsrsrsrs adoro ler coisas de gente que chegou no seu limite. Deu até vontade de mandar um conto pra trasgo