Vamos lá, cante comigo: “Chico, Chico, Chico — Bon Bon”. Não conhece o Chico Bon Bon, o macaquinho faz-tudo? Caso você não tenha uma criança de três anos em casa, eu explico.
Chico Bon Bon é uma animação produzida pela Netflix na qual o protagonista do título resolve problemas diversos por Animalândia com a ajuda de sua equipe, a Liga Faz-Tudo, composta por Clark (um elefante azul), Trovão Colorido (uma gata radical) e Tiny (um rato).
Até aí nada muito diferente algo típico para crianças pequenas — salvo pelo fato de que o programa é muito bem produzido, o que é um alívio no mar de programação ruim para crianças.
Mas o que chama a atenção em Chico Bon Bon é que você se importa com os problemas que o macaquinho tem que resolver. E isso é um feito impressionante dado os tais problemas:
- A calcinha da prefeita está frouxa e o desfile de roupas íntimas não pode começar.
- O Senhor Pomodoro não consegue entregar uma pizza.
- A torradeira da Senhora Repolho caiu em um buraco.
- Herb, o caranguejo, não consegue esquentar seu chocolate.
- Os clientes não conseguem chegar na Casa do Espaguete no topo de um monte.
Certo, Rodrigo, e o que roupas íntimas têm a ver com a escrita de épicos?
A vantagem de estudar roteiro com desenhos infantis é que que permitem que você enxergue as questões de maneira mais direta e absurda, tornando os exemplos mais claros. No caso:
Os problemas são importantes porque os personagens se importam
Parece pleonasmo, mas não. Quando Chico Bon Bon e sua turma chegam para ajudar o caranguejo que não consegue esquentar o seu chocolate quente, eles agem como se esse fosse um problema seríssimo, estão totalmente investidos em resolver custe o que custar. Não há qualquer espaço para dúvida, Herb precisa do seu chocolate quente. E também não há nada externo às cenas que “justifique” o tamanho do conflito.
Esse é justamente o problema que vejo em outras obras de ficção mais adultas, particularmente em épicos: os problemas são externos aos personagens, que não se importam o suficiente. O famoso “tá, e daí?”
Tá, e daí que o mundo vai ser destruído? Tá, e daí que a cidade vai queimar? Tá e daí que o vilão quer explodir a cidade?
Muitas vezes o autor iniciante joga um mega conflito grande na trama esperando que o leitor se importe, mas não é assim que empatia funciona. Empatia é enxergar o outro como humano, completo.
É por isso que muitas vezes estamos mais preocupados em saber se o herói vai conquistar o mocinho do que se ele vai salvar o planeta. Porque é ali que está o coração do personagem.
Sendo mais didático, é mostrar os detalhes, o colorido daquele mundo, daquela cidade, mostrar o que perdemos se ela for destruída. E principalmente, construir personagens que façam a gente se importar.
Já perdi a conta de gente que passou pelo meu curso querendo escrever um personagem em depressão, que não liga para nada, apático. Só que é muito, muito difícil criar empatia no leitor por um personagem que não quer nada. O protagonista é o nosso veículo de empatia. Ele precisa se importar, ou não damos a mínima.
Melhor, quer um conselho? Esqueça a destruição da cidade
Um bom antagonista não precisa explodir um mundo inteiro, basta mexer com uma única coisa realmente importante ao seu protagonista. Pode ser uma pessoa (a irmã que o ensinou a andar de bicicleta quando ele tinha cinco anos), um objeto (o violino que ganhou do pai) ou um cachorro (John Wick, alguém?)
Quando falamos em conflitos narrativos, que devem ser apresentados logo no começo, significa “mostre por que eu deveria me importar”.
Agora, Chico Bon Bon é um desenho para crianças pequenas, e nesta idade elas não deveriam ter preocupações maiores do que um chocolate quente que está frio, ou quantos backflips é possível dar em uma panqueca (meu recorde é dois). Uma criança não tem a menor capacidade de diferenciar problemas grandes e pequenos.
Adultos também não.
Tem uma pandemia acontecendo lá fora e sim, a gente se importa. Mas seres humanos não conseguem se manter em alerta máximo por muito tempo. A tragédia que se estende no mundo, particularmente no Brasil, vai aos poucos se tornando um triste pano de fundo, uma preocupação constante, fonte de stress e ansiedade que corrói, mas não empurra para a ação.
Então a gente se pega mais nervoso do que deveria porque o celular está devagar ou porque acabou a manteiga na geladeira. Nossos sentimentos intensos podem aflorar por coisas pequenas. Não somos diferentes do Senhor Pomodoro preocupado com sua pizza.
Empatia é um músculo
É preciso exercitar, literatura é um caminho. Bons contadores de história sabem que a melhor forma de chamar a atenção para uma tragédia (ficcional ou não) é resgatar pequenos detalhes, mostrar o que se coloca a perder, não em números, mas em experiência humana.
Com o músculo da empatia minimamente treinado, você não consegue falar “e daí?” para milhares de mortes todos os dias. Você vê o número, mas também consegue enxergar o neto que não conhecerá os avós, o chef que não viveu para abrir o próprio restaurante, o executivo que nunca se mudará para a chácara que comprou para aproveitar a aposentadoria.
Desculpa, esse artigo deu uma virada meio para baixo num assunto que começou com Chico Bon Bon.
O que eu quero dizer é que trabalhar com narrativas é trabalhar com empatia. É criar personagens que se importam, e assim fazer com que sua leitora se importe. Seja com uma torradeira desaparecida ou com o fim do mundo, a gente precisa enxergar como isso afeta o mundo interior da protagonista.
Tudo bem que você quer escrever um épico, tratar de temas GRANDES! Mas você só chega lá por meio das coisinhas pequenas.
Porque da próxima vez que você me apresentar um herói tentando acabar com um vilão sem me explicar por que raios o rapaz se meteu naquela masmorra de 17 níveis, sou eu que vou dizer “e daí?”
Uau!
Apesar deste frio congelante , este artigo esquentou as ideias aqui…
Eu adorei!!
Adorei!!!