Escrever crítica construtiva é uma arte. Depende de tato, sutileza e conhecimento.
O papel de editora é muitas vezes o de um carrasco: cortar cabeças textuais, dizimar adjetivos inocentes e chacinar advérbios. Às vezes o texto precisa de mais que uma breve polida; você vai ter que assumir o papel da treinadora carrasca e fazer aquele amontoado de palavras suar até perder gordura.
Como fazer isso sem acabar com a frágil autoestima autoral?
Antes, um lembrete de que este não é exatamente um texto sobre como fazer uma crítica, embora a gente vá sim passar superficialmente por algumas questões. É mais sobre como apresentar uma crítica à autora sem fazer inimigos, recomendado para editoras, leitoras críticas, ou mesmo para quem precisa opinar o texto da amiga, a famosa “leitura beta”.
Eu me lembro que em um dos primeiros cursos online que ministrei, um dos comentários de uma aluna era mais ou menos o seguinte:
“Eu não tenho problema em receber críticas/apontamentos/correções, mas eram feitos com gentileza, você aponta os erros, mas também motiva, incentiva a escrever!”
Desde que ouvi isso, há alguns anos, comecei a refletir sobre o meu processo para fazer isso de maneira mais consciente. Este texto é uma tentativa de sumarizar tudo isso.
Como não mandar uma crítica
Vamos começar da minha pior experiência, ainda nos tempos de ensino médio, num fórum de contos escondido num canto da SpellBrasil, antigo site de RPG. Em determinado momento, começamos a nos incomodar com o baixo nível de críticas do site, onde qualquer texto meia boca era carregado de elogios, e como poderíamos melhorar assim?
Naquela impulsividade adolescente, saí pelo site espalhando “críticas sinceras”, e bem, eu fui um grande babaca (desculpa, Desert Rider).
Não havia nada de tão terrível assim nas críticas, mas era opiniões escritas sem conhecimento, entregues de maneira destrutiva e com uma presunção que me envergonha até hoje. A gente nunca está imune, recentemente escrevi críticas quando eu estava cansado, mal humorado, que nunca deveria ter enviado daquele jeito.
Ah, mas eu preciso lamber texto ruim? Não. Mas há milhões de maneiras de dizer a verdade. Primeiro eu vou falar de contextos, e lá para baixo vem a formulinha.
Contexto é tudo
Uma das coisas mais difíceis do mundo é fazer uma crítica construtiva sem saber nada sobre a autora, contexto ou objetivo daquele texto. Ele foi escrito para determinado concurso com limite de caracteres? É apenas um exercício de construção de personagem? A autora sabe mais do assunto do texto que você?
Desculpem os pós-modernos que não consideram além do texto diz em si, mas se o objetivo é devolver uma crítica a quem escreveu, isso faz toda a diferença.
Começaremos com um pouco de filosofia: Por que você está mandando esta crítica?
Sério, qual é o seu objetivo? Você quer que a pessoa escreva mais depois de ler sua crítica? Pode parecer uma pergunta meio cretina, mas tem feedback que parece que foi escrito de propósito para desanimar, tirar alguém do jogo da escrita.
Você precisa ver se o negócio é melhorar aquele texto específico, ou ajudar a autora a melhorar nos próximos. Por exemplo, quando respondo aos exercícios do meu curso, eu não estou nem aí com aquele exercício escrito. Ele serviu a um propósito, o feedback é sobre o que poderia ser feito diferente nos próximos, eu estou sempre tentando ampliar os horizontes de possibilidades, aumentar o repertório.
Já uma leitura crítica para a Trasgo tem propósito quase o contrário, muitas vezes vou restringir e cortar aquele texto para potencializar o sentimento que quero conduzir, fazer aflorar.
O texto já foi publicado? Quão pronto ele está?
Ainda na mesma toada, uma crítica sobre um texto já publicado deve orientar a autora para os próximos (estou falando de crítica que volta à autora, já a crítica literária para leitoras, é outro negócio).
Não cabe tanto ficar falando do que “poderia ter sido”, e sim do “que pode ser além”. Texto publicado é aquela coisa, né? Vale mais a opinião, sensações despertadas, do que bater em cachorro morto.
Aqui também cabe pensar em “quão pronto a autora acha que está”. Às vezes ela está esperando copydesk (crítica final, que mexe mais no fraseado), e você manda uma primeira leitura, sugerindo refazer toda a escalada para o clímax do arco narrativo. Acertem as expectativas.
Qual o nível de experiência da autora?
Você pode saber disso, ou estimar pelo texto. Mas um feedback que envio para alguém que realmente domina a escrita é muito diferente do que alguém que percebo iniciante.
Exijo muito mais de autoras experientes. Quando sei que isso não é o melhor que são capazes, e posso apontar que “essa parte do clímax pode ser muito melhor se conseguirmos vislumbrar determinado contexto”. Ou só falar que “tal personagem está rasa”, porque a autora deve saber disso e só está esperando alguém para dizer isso a ela.
Já alguém menos experiente vai ter dificuldade com um feedback desses. Você pode escrever, mas vai ter que explicar como fazer isso, e quais os efeitos que algumas possibilidades causariam na leitura. Dá muito mais trabalho. Tem que pegar na mão e levar junto.
E mais importante, um texto mais amador vai ter mais coisa para resolver. A gente aponta o que está mais óbvio, mais na superfície. Quando eu ensinava Kung Fu, meu mestre dizia para não corrigir tudo de uma vez. Corrige só o punho, deixa a aluna treinar, depois de um tempo arruma a perna, na aula que vem o ombro. Para a escrita é a mesma coisa. Não dá para esperar que alguém se anime com o feedback de um texto onde TUDO parece errado.
A gente espera que uma autora mais experiente lide melhor com as críticas, mas isso nem sempre é verdade.
Qual é o seu nível de experiência?
Isso não diz respeito tanto ao que se responde, mas ao como. A gente precisa assumir que a autora sabe o que está falando, e a crítica vai ser mais parecida com “aqui eu tive essa e essa impressão, era isso que você queria passar mesmo?”.
Isso vale especialmente se você por algum motivo está criticando algo do qual você não tem repertório suficiente. A gente tenta evitar ao máximo que isso aconteça, mas às vezes cai na Trasgo um texto que mistura cyberpunk com romance de cavalaria, e eu preciso admitir que leio bastante do primeiro, mas vou ficar meio perdido nos tropos do segundo.
Qual é o seu papel como crítico? Você está criticando profissionalmente? Você está recebendo para isso?
AH, SIM, ISSO É BEM IMPORTANTE. Uma leitura beta para amigas é diferente de uma leitura crítica contratada. Lógico que a sua experiência conta. Mas em uma leitura beta você vai falar de uma maneira mais rápida, sobre o que você gostou, não gostou, o que chamou a atenção, que parte soou estranha.
A leitura crítica contratada é mais formalizada, e constrói (num documento à parte ou nas anotações do texto) uma estrutura que permitirá à autora enxergar de maneira mais sistemática. Você vai discorrer sobre personagens, arco dramático, construção de mundo e cenários, narrador, ponto de vista, barriga, furos de roteiro e por aí vai.
Uma leitura profissional, como a que fazemos na Trasgo, tem um objetivo bem claro: deixar o texto melhor antes da publicação na revista. Por isso não vamos fazer um documento de leitura crítica completa, mas nas áreas onde é mais necessário mexer fazemos anotações muito mais aprofundadas do que um simples comentário. Ou seja, trata-se de uma mistura de ambos.
Tem gente que se vê na obrigação de mandar um documento de leitura crítica quando uma amiga pede para ler e dar a opinião. Não é necessário, e, dependendo do relacionamento entre vocês, pode até ser rude (poxa, não precisava detonar o texto). De novo, acertar as expectativas.
E já que estamos nessa seara…
Qual é o relacionamento entre você e autora?
Um relacionamento mais próximo pode ser bom ou ruim, dependendo do perfil. Há autoras que levam com maior peso uma crítica feita por uma amiga. Fazer leitura crítica de texto de cônjuge, então, deveria ser proibido.
Quando o relacionamento é de “parceria de crítica”, como muita gente que escreve vai construindo, o negócio acontece de maneira mais ou menos fluida, um critica o texto do outro e por aí vai. Mas até nessas ocasiões a formulinha pode ajudar.
A fórmula é mais velha que minha avó
Já ouviu falar em técnica sanduíche? Crítica positiva? Morde e assopra? Tem outros nomes. É bem simples: se você precisa criticar alguém, você primeiro elogia, faz a crítica e termina elogiando. É ridículo, eu sei, mas funciona.
Primeiro quebra o gelo, abre um pouco a mente, aí vem a crítica, depois dá um incentivo. No feedback literário a gente ajusta isso para:
Primeiro, você diz o que está funcionando. O que chamou a atenção de um modo positivo, o que você gostou. O objetivo primário aqui é passar um verniz no que está bom para que a autora não mexa nisso, para que não estrague essa parte ao reescrever o texto.
Em seguida, o que não funcionou. Seja personagem, arco dramático, ajustes de roteiro, o que for.
Encerre de maneira positiva. Aqui não é bem outro elogio, é mostrar que você confia na capacidade da autora de melhorar aquele texto. Algo na linha do “agora vamos trabalhar nesse texto que ele está ficando incrível” ou “mal posso esperar para mostrá-lo pra todo mundo”, algo assim. Lembra, o objetivo é incentivar a autora a (re)escrever.
Nem sempre a fórmula vai se encaixar na proposta do trabalho, e às vezes pode parecer forçado ou ridículo fazer as coisas desse jeito. E há quem diga que o problema dessa fórmula é que “uma vez que você a conhece, ela deixa de funcionar”, o que discordo. É muito mais gostoso receber uma crítica com “o que funcionou” e “o que ficou estranho”. Quando vem só o segundo campo, você se joga na lata do lixo como um papel amassado.
Falando nisso, tenho um outro texto aqui no Viver da Escrita que mostra o outro lado: “Como receber uma crítica“. Leia e você será puro garbo e elegância ao receber críticas.
A maior vantagem da fórmula é justamente esta: ela te obriga a olhar também o que está funcionando. É muito fácil encontrar defeito. Ao perceber em que áreas a autora acertou, isso ajuda a treinar o seu olhar e se tornar uma editora melhor.
Ah, mas tudo isso não vai nas anotações laterais?
Anotações laterais, ou comentários no texto são ferramentas essenciais do kit de ferramentas de qualquer editora ou leitora crítica. Elas apontam com precisão os pontos de melhoria e também os pontos que funcionaram, até gosto de eventualmente marcar nos comentários sobre como uma frase ou outra me fez sentir, geralmente um elogio, como “Caramba! Essa doeu, coitada da protagonista.”
Mas a tal fórmula é um comentário geral que gosto de acrescentar além das notas laterais, pois é difícil você passar uma visão aérea para a autora naqueles comentários. Seria algo como quatro ou cinco parágrafos no começo ou no e-mail para você responder ao famigerado “e aí, o que achou?”, implícito em qualquer contato com autoras (e artistas em geral).
Mais algumas coisinhas a levar em consideração
“Isso é o que eu faria“
Esta é uma questão polêmica, há quem diga que não é papel da crítica reescrever o texto da autora. Neil Gaiman tem uma frase famosa:
“Remember: when people tell you something’s wrong or doesn’t work for them, they are almost always right. When they tell you exactly what they think is wrong and how to fix it, they are almost always wrong.”
[Lembre-se: quando as pessoas te dizem que algo está errado ou não funciona para elas, estão quase sempre certas. Quando dizem exatamente o que está errado e como consertar, estão quase sempre erradas.]
Acho ok sugerir possibilidades, elas ajudam a passar a ideia, mas muitas vezes as autoras pegaram minhas sugestões e levaram para lugares que eu jamais imaginaria. Mantenha a cabeça aberta, a autora não é você.
Fale sempre do texto, não da autora
É uma diferença sutil, mas importante. Você vai escrever “aqui a narradora está sendo homofóbica”, o que é diferente de dizer “você está sendo homofóbica”.
Assuma a melhor das intenções
Como professor de escrita, eu recebo CADA COISA que dá vontade de jogar o autor numa piscina de gasolina e tacar fogo. Mas aí eu escuto o grilo falante “descansa militante”, respiro fundo, e escrevo calmamente quais mensagens o texto está passando e por que isso é problemático.
Quando você está lidando com escritores em início de carreira, muitos não conhecem os tropos problemáticos, como “o salvador branco“, o “melhor amigo negro” ou “enterre seus gays“, estão apenas repetindo sem perceber o que já leram milhares de vezes.
Quando escrevo um comentário sem agressividade explicando essas coisas, sempre mando junto um material de leitura e links mais aprofundados. Já recebi muitos agradecimentos de autores que não percebiam como perpetuavam estereótipos em seus escritos. Privilégio é cego.
Já vi gente mudar e melhorar muito no breve período de dez semanas do meu curso básico. É muito poderoso o efeito de uma crítica bem feita, tecida com cuidado, quando a intenção é realmente estimular a autora a ir além.