Era uma vez duas internets irmãs. A primeira, filha cultura do compartilhamento. A segunda, empreendedora. Esta é a história do relacionamento conturbado entre elas.
Eu me pergunto se estou ficando velho, ou deslocado dentro de uma bolha. Ou se as gerações mais novas é que estão. E já que escreverei um texto sobre “essa geração de hoje em dia”, deixe-me pegar o suéter e o sapatênis (na verdade eu gosto de sapatênis, desculpa).
Primeiro, um pouco de contexto: o Ângelo mandou uma newsletter contando sobre umas ideias e projetos, e, alguns dias depois, esta outra aqui:
Aí que eu mostrei pra vocês a lista de projetos, cada qual com seu codenome respectivo. A vida é louca, né? Faz tipo duas semanas que eu lancei a última news e alguns projetos já caíram por terra. Vou falar um pouco deles aqui e a razão da morte deles.
Foda que alguns até poderiam ser implementados, mas só de saber que eles já existem e que eles tem uma versão paga por aí me deixa triste.
Pensa comigo: eu queria fazer algumas coisas grátis, sem muita firula, pras pessoas usarem e serem felizes. Aí eu entro em um mega site daora cheio dessas funcionalidades cobrando sei lá, 30 dólares por mês, e penso: pra que?
Esse comentário me jogou numa longa trip sobre as duas internets, que como em “a cidade e a cidade” de China Mieville, se sobrepõem, mas sem se cruzarem.
Era uma vez o compartilhamento
Eu cresci em uma Internet cuja palavra mágica era comunidade. Protocolos abertos, APIs para todo lado, blogs com blogrolls (lista de links) enormes, e até mesmo blogs que existiam somente para fazer curadoria do conteúdo incrível que existia disperso.
Era a geração Software Livre, herdeiros da cultura cyberpunk, que enxergava as Grandes Corporações (TM) como o mal a ser combatido. “Assim você faz um acorde. Assim outro. E assim outro. Pronto, agora vá montar sua própria banda punk.” Cultura hacker era idolatrada.
O termo “hacker” foi reapropriado várias vezes, então deixe-me defini-lo como quem aprende a modificar (ambientes, aparelhos, sistemas) para expandir as possibilidades limitadas definidas pela corporação original — desbloquear o iPhone, root no Android, trocar o sistema operacional do PC, fazer um leitor de ebook funcionar num aparelho para o qual ele não foi desenvolvido, consertar seu próprio trator sem pagar as taxas abusivas da fabricante, e, sim, pirataria.
Pirataria é outra questão que vale um artigo próprio (que até já escrevi), mas o pirata nesse contexto era uma figura cinza, um Robin Hood que tirava das Grandes Corporações Megamilionárias para dar aos pobres, sem ficar com um centavo disso tudo.
Foi com essa internet que cresci, esperando a meia-noite para conectar um modem à linha telefônica, abrir o discador e esperar o famoso barulhinho, para entrar num mundo de fóruns, chats e páginas feias criadas no geocities.
Um dia, chegaram os empreendedores
Um dia, chegou o dinheiro. A nova geração que cresceu acompanhando os meninos do Vale do Silício se tornarem milionários.
O Santo Graal agora se chamava “escalabilidade”, de nada adiantava criar algo para a sua comunidade se não fosse para escalar para um negócio gigantesco depois. Comunidade deu lugar ao “usuário”, numa relação muito mais verticalizada.
O negócio passou a ser criar qualquer coisa para encher de anúncio e ganhar dinheiro. Dinheiro fazia mais dinheiro, comprando conteúdo, bots e posicionamento.
Foi o fim de uma era. Ou não?
A verdade é que estas duas realidades sempre coexistiram. Enquanto os fóruns Phpbb se espalhavam para todo grupo de pessoas, criava-se a bolha financeira da primeira onda da web, que estourou arrastando vários negócios incipientes. E enquanto Google, Facebook e Cia caminhavam para se tornar os gigantes que são hoje, o GitHub se tornava o maior repositório de código aberto do mundo.
A mistura de ambos os mundos se encontra no mercado de criptomoedas (Bitcoin e afins) que carregam muito da filosofia hacker (descentralização e ausência de controle estatal), porém cheio de gente buscando um esquema para enriquecer rápido.
Parece-me que ambas as internets vão continuar coexistindo por muito tempo, entre cotoveladas e beliscões.
Por que criar?
Essa é a grande questão, não é? Por que fazer de graça se já tem gente que cobra? Por que fazer de um jeito simples, se já tem feito por empresa grande, com mil integrações?
Por que escrever um livro se a biblioteca já está cheia deles? Por que ilustrar se você nunca vai ser tão bom quanto aquele cara incrível lá no Artstation?
As respostas são parecidas. Colocar um app no ar, um plugin, um site, pode ter tanta força de autoexpressão quanto aquilo que é tradicionalmente considerado arte. “Eu queria que X existisse e trabalhei para isso.”
E, dinheiro. Odeio quem acha dinheiro feio. É discurso de quem tem muito para deixar artistas na miséria (e PELAMOR, não tem nada mais brega que colocar “energia de troca: 80 reais” na divulgação do seu evento neohippie). Então, fazer as coisas para tentar uma graninha, agora ou num futuro, é sim uma resposta totalmente válida.
Mas se for só por dinheiro é meio triste
A gente vive num tempo merda em que qualquer talento precisa ser transformado em fonte de renda, o salário achatou, tudo está tão caro que a gente se vira tentando vender aqueles bonequinhos que fez porque queria aprender crochê. “Side job” se você tem grana, senão o termo é “bico” mesmo.
Mas às vezes é legal fazer só pra aprender. E colocando no mundo se aprende o dobro do que só estudando. Tem muito conhecimento que a gente nem fazia ideia de que dava para ligar a áreas bem diversas. Uma habilidade com planilhas que você fez pra organizar os ingredientes. Um truque pra mandar email pra uma galera de uma vez. Um jeito de organizar o pensamento (esses são as melhores).
Existe uma certa satisfação em fazer algo por prazer, que você não leva jeito mesmo, como se mandasse uma banana para o capitalismo que quer que sejamos cada vez mais otimizados, produtivos e robóticos.
O mundo precisa de mais pianistas medíocres, jardineiros com hortas praguentas e pintores de arte feia.
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