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Das coisas que a gente conta para sobreviver

Eu já contei da vez em que uma adolescente pulou o muro do hotel onde eu organizava a coletânea de imprensa do NX Zero? Eu era assessor de imprensa de uma feira agropecuária do interior (alô, Facilpa) e a banda iria se apresentar naquela noite.

Aquela menina teve que pular de volta o muro, sob o olhar do vigia, que nem ajudou a coitada. Contudo o mais engraçado desse dia foi ficar na porta do hotel, devidamente munido de meu crachá, indicando aos seguranças quem entrava (imprensa) e quem ficava de fora (fãs, às dezenas): “Me deixa entrar senão eu morro!”

Desde que tive nas mãos o poder de decidir quem vive e quem morre, compreendi melhor a tal síndrome do pequeno poder.

Essa é uma pequena anedota verídica de uma carreira nem tão longa assim em assessoria de imprensa. Dela passei para redator, primeiro em mídias sociais, depois me envolvi com publicidade e então fui para as drogas pesadas como freelancer.

Ou seja, sempre trabalhei com histórias. Mas elas não participam só da minha vida, mas de todo mundo, até de quem não lê. Toda cultura é feita de histórias.

 

Quanto vale a Torre Eiffel? A Estátua da Liberdade, o Cristo Redentor? Por que monumentos e prédios simbólicos são tão atacados, e por que a gente se importa (ou não) com eles? Outro dia um programa de TV resolveu calcular o valor da Torre Eiffel, com base no seu peso em aço e localização privilegiada. Mas eu duvido que algum francês concordaria em vender a torre como sucata para construir um shopping center no lugar.

Há quem chame de “valor sentimental”, ou “valor cultural”. Por hora prefiro chamar de “valor das histórias”. Monumentos têm a importância das milhares de histórias que são tecidas ao redor deles, que conferem significado. (Mas cultura é fluida e monumentos são criaturas vivas, sempre ressignificadas.)

Histórias têm valor. Inclusive financeiro (um beijo pro King outro pra Rowling). Veja a Disney, 23ª empresa com maior poder de mercado do mundo, cujo principal patrimônio é um punhado de personagens e causos.

Quando eu era pequeno adorava inventar, mas nem imaginava viver disso. Era daquelas crianças pentelhas que perguntam aos escritores na escola: “mas você também trabalha?” E me lembro de ser muito novo quando peguei o gravador de fita cassete do meu pai e gravei uma aventura espacial, à là “O Mundo da Lua”. (Talvez esteja aí a origem de Morango.)

Essas fitas se perderam. A vontade de contar histórias não.

O segredo mais bem guardado da publicidade é que ninguém está interessado em te vender um tênis. Querem mesmo é te contar uma boa história para você gostar da marca e achar que tomou sozinho a decisão de comprá-lo.

Viu só o que eu fiz no parágrafo anterior? Eu disse “o segredo mais bem guardado…”, eu te contei uma historinha, o que nem é bem verdade, porque todo mundo sabe que a publicidade faz isso.

Historinhas têm poder. Elas capturam e mantém a sua atenção.

Por exemplo, eu posso contar que já fui jornalista, assessor de imprensa e publicitário, mas isso é chato. Ou eu posso contar do dia em que uma adolescente pulou o muro do hotel…

É engraçado como no Brasil a gente tem essa mania de separar quem escreve literatura em uma caixa e quem escreve para publicidade, blogs e afins em outra. Usamos a palavra “escritor” para um e “redator” para outro, como se não fosse tudo a mesma coisa. Em inglês é tudo “writer”. No máximo “copywriter”, sendo mesmo específico.

Talvez essa separação venha da nossa mania de achar que dinheiro é sujo, dinheiro e arte não combinam, escritor de verdade é aquele que “não se vende”, como se ninguém precisasse comer e pagar boleto. Casimiro de Abreu escrevia versos para vender café. Olavo Bilac fazia comercial de palito de fósforo.

Muitas dicas de escrita são universais e valem para todo tipo de redação: Escolha palavras simples. Varie o tamanho das frases para criar ritmo. Corte palavras e evite repetições.

Está gostando até aqui? Acredito que sim, ou não chegaria tão longe. Escrever  é conduzir o leitor pelo texto. Agora vou fazer o que nenhum mágico deveria fazer e revelar o truque. O parágrafo anterior era assim na primeira versão:

“Utilize palavras mais simples. Varie o tamanho das frases. Corte palavras desnecessárias. Evite repetições desnecessárias.”

Repare como descumpri todas as regras em duas linhas. Um amigo, baita redator, costuma dizer que todo mundo escreveria uma obra prima se tivesse saco de reescrever quantas vezes fosse necessário.

Agora volte ao primeiro parágrafo do post. O que tem ali? Isso mesmo, uma história. A versão anterior também começava com uma história:

“Eu soube que seria escritor desde que ganhei um prêmio de “melhor redação da cidade” na quinta série. Aliás, o melhor não foi o prêmio, foi a bibliotecária da escola me perguntar se aquela história era minha, ou se tinha copiado de algum livro — o que na época me encheu de orgulho, mas hoje, pensando bem, era algo tão derivativo com elfos e magos, que não me surpreende a pergunta.

A princípio não há nada de errado com esse começo, mas escolhi começar com algo melhor. Um bom gancho, que despertasse mais curiosidade.

Só que isso é mentira (que aquele era o início anterior, a parte do prêmio é verdade). Eu só queria contar do prêmio, e agora você já sabe. O começo original era sobre Lúcia Já-vou-indo, o livro mais antigo que me lembro de ler. Entre todos os começos, escolhi aquele com mais impacto. Você só tem uma chance de conquistar o leitor.

Deixe-me ver o que mais… Quando escrevi “um beijo para o King e outro para Rowling”, estava fazendo uma inserção informal no texto, uma aproximação para criar intimidade. E agora, com “deixe-me ver o que mais…”, trata-se de oralidade, ou melhor, escreva como você fala.

Escrever é cheio de truques. Quanto mais você conhece, menos truncado e mais cativante o texto. Embora não exista quem não saiba contar um bom causo, na hora de escrever vale organizar o pensamento e saber escolher as palavras certas.

Isso aqui em cima é só uma casquinha do curso que andei organizando nos últimos dois anos. E que (olha a egotrip), pensei, formaria turma rapidinho. Mas caí do cavalo e me senti como a libélula que convida Lúcia Já-vou-indo para a festa, olha no relógio e nada dela aparecer.

Mas se tem uma coisa que aquele livro me ensinou é que pessoas (e lesmas) podem demorar um pouco, mas elas chegam. Resolvi adiar o curso e aumentar o tempo para inscrições. Corre lá que tem desconto para quem se inscrever na lista de espera.

Como se ensina alguém a escrever? A contar histórias? Talvez o truque seja tornar o processo de construção de texto um pouquinho menos automático e mais consciente. Ajudar a enxergar toda essa teia de narrativas ao nosso redor, pegá-las no ar com uma rede e depois soltar o verbo por aí.

(Sério, inscreva-se, o conteúdo está de primeira).

Frase do dia: — Depressa, Lúcia, assim você não chega! — diziam de passagem. E ela respondia, mastigando devagarinho um brotinho de alface: — Já vou indo... Já vou indo... — e se esforçava, pensando que estava andando um bocadinho mais depressa.

Foto: Jamie Street / Unsplash

Publicado em Redação no dia 26 de outubro de 2017

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