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Medo, esperança e colapso de narrativas

Qualquer pessoa com um pouco de privilégio e consciência sabe dos efeitos negativos que nosso estilo de vida provoca no mundo. Agora, a pandemia do Covid19 é a primeira vez que em que pudemos perceber, de forma mais vívida, a nossa fragilidade enquanto sociedade.

Estamos com medo e precisamos de esperança. Para isso, arte.

Começaremos pelo medo

O medo, na forma de uma certa apreensão sobre o futuro do mundo, sempre puxou o pé das gerações mais novas. As narrativas de colapso climático há muito deixaram o círculo científico para se tornar cenário de filmes, livros e animações.

Nós sempre soubemos que o nosso estilo de vida gera mortes. Que o celular na sua mão tem componentes que poluem rios chineses. Que sua roupa barata é costurada por mulheres que não ganham o mínimo para comer.

Todo mundo que tinha uma vidinha confortável queria continuar assim, eu incluso. Mas caíram os intermediários. Não tem uma grande empresa, um sistema econômico inteiro, diluindo as consequências dos seus atos.

É como se tivesse sumido a bandejinha de filé mignon cortadinho no mercado. Se quiser carne vai ter que ver o boi morrer. Se quiser “que a economia continue a todo vapor”, vai ter que ver os corpos carregados de caminhão do hospital.

É aí que sociopatas se revelam. Ou não?

É muito fácil apontar o dedo. Mas também esquecemos que tem muita gente agindo por medo. Se você está assustado, é a sua tribo contra todo mundo.

A narrativa do sistema capitalista de crescimento eterno e garantia de prosperidade desmorona rapidamente, e todo mundo se pergunta “o que vai ser daqui para a frente?” Medo de não encontrar comida no mercado, de não ter dinheiro para comprar, de não ter emprego, do aumento da violência, de uma agressiva luta de classes, medo por não saber. O desconhecido é o medo primal.

(Lembrando que são as classes média e alta quem experimentam esse medo pela primeira vez, já que indígenas, moradores de favelas e outras classes desprivilegiadas já vivem com medo de projetos de extermínio há anos.)

O medo é um dos sentimentos mais manipulados por aqueles em posição de poder. É por isso que a estratégia mais antiga da cartilha é deixar os eleitores com medo da oposição.

Pessoas com medo procuram um líder como formigas no açúcar. Uma figura que os dê um norte, uma direção, que diga que vai ficar tudo bem. Pessoas com medo buscam os arquétipos de mãe e pai.

Sabe como você conversa com uma criança com medo? Primeiro você abraça, acalma, respira junto. E depois você mostra que não tem nenhum monstro embaixo da cama. Não adianta ficar gritando com quem está agindo por medo. Não por pena, mas porque é perda de tempo, ela não vai escutar mesmo.

Quando você sabe que o outro tem medo, é mais fácil empatizar, sentimento tão maltratado em tempos polarizados como o nosso.

Então, como discutir sobre o futuro incerto? Para isso precisamos entender outra coisa:

Colapso de narrativas

Aqui estou derivando do post de Venkatesh Rao sobre “Plot Economics“, citado abaixo (tradução minha).

Durante um colapso de narrativas, todos abandonam temporariamente a tentativa de encontrar consenso na narrativa, […] e passam a fazer contas com números crus, fatos ruidosos e incertos. Cálculo de porcentagem de álcool, estoque da despensa, risco de infecção, cálculo de papel higiênico. O humano médio só recorre a esse tipo de dado quando narrativas falham.

[…] O que fazer em tais condições, quando não há narrativas para navegar? Alguém me perguntou se eu acho que nossa resposta [nos EUA] é exagerada ou tímida. É outra forma de perguntar a mesma coisa.

Essa pergunta não pode ser respondida sem uma perspectiva narrativa. Sem a narrativa, é difícil deduzir até mesmo quais os critérios significantes, que nos permitem calibrar nossas respostas. Seria o equivalente a tentar ganhar ou perder na bolsa de valores sem comprar/vender cedo ou tarde demais, quando você não faz a menor ideia do que está havendo.

Venkatesh admite que em uma época dessas não é que não existam diversas narrativas, o que ele chama de “colapso” é uma ausência de consenso de grupo sobre elas.

Nossos mitos estão caindo, o principal deles o da economia global como um sistema resiliente. Muitos acordaram para o fato de que a economia tem se tornado cada vez mais instável e desigual conforme se torna mais abstrata ao redor das bolsas de valores.

A narrativa que está em disputa hoje é “o que vai acontecer depois”.

Se você acha que o país vai quebrar porque ninguém vai ter emprego nem dinheiro, acertou. Mas vamos ser sinceros, você sabe e eu sei: o dinheiro nunca esteve nas mãos do trabalhador.

Se me permite uns pitacos, o argumento de que o colapso do sistema vai gerar mais mortes (por desemprego, caos social, etc) é falacioso. É o mesmo do patrão que diz que “precisa reduzir os benefícios e salários dos trabalhadores, senão a empresa quebra”, mas leva sozinho um bônus equivalente ao salário de todo mundo.

A recuperação da economia brasileira vai depender se vamos continuar a acreditar que é normal alguém ganhar 30x mais trabalhando na mesma empresa. Ou que bancos de lucro recorde recebam alívio fiscal. Quer dizer, o dinheiro está aí, sempre esteve. Mas na mão de quem?

Vai depender de enxergarmos o estado como provedor de uma rede de segurança para acolher os que têm menos (e, quem sabe, no futuro poderemos falar de algum tipo de meritocracia, que dependeria de que todos partissem do mesmo ponto).

Um ponto-chave aqui é a ausência de consciência de classe do pequeno patrão. A elite econômica (aquela que se parar de trabalhar hoje ainda teria grana para viver bem confortavelmente por mil anos) é muito esperta para manipular em prol de suas causas o pequeno empresário, que está muito mais próximo dos seus trabalhadores do que de quem realmente tem poder.

Quando falamos em “mudar as regras do jogo para uma sociedade mais justa”, o pequeno empresário não percebe que ele só tem a ganhar, que as regras estão adulteradas, mas não para beneficiá-lo. Empresas muito grandes conseguem fugir de impostos que você paga.

Quer outro exemplo? Se sua empresa não conseguir pagar um empréstimo do banco, ela provavelmente quebra. Se um grande conglomerado nacional não pagar um empréstimo muito mais alto, o presidente vai resolver tudo com o diretor do banco num almoço. (Ou, mais provavelmente, na zona.)

Retomando. O mundo é uma teia de narrativas que usamos para nos orientar. Globalização, capitalismo, democracia, sistemas de saúde, bem-estar social são ficções, fios narrativos que explicam o mundo.

Não é de agora que estamos meio perdidos, no que a academia convencionou chamar pós-verdade, ou a impossibilidade de verificar veracidade ou determinar fontes confiáveis. Na pós-verdade as narrativas estão em conflito o tempo todo.

A diferença agora é que nenhum dos lados consegue dar uma resposta concreta. Quanto tempo o isolamento social vai durar? Como vai ser a recuperação da economia? Quantos vão morrer? Ninguém sabe.

Por isso, o terceiro ato deste texto é tão importante.

O papel da arte na criação de esperança

A crise mostrou como dependemos uns dos outros. E vamos depender ainda mais nos meses vindouros.

Tem muita gente com medo, principalmente por não conseguir imaginar saídas. Se é papel da arte apresentar possibilidades, (e aqui vou puxar sardinha para minha área), a ficção científica vive de futuro.

Para imaginar os piores cenários, basta um pouco de medo. Para imaginar saídas, principalmente otimistas, é preciso coragem. Nós precisamos de múltiplas narrativas sobre o futuro, para que possamos escolher caminhos que não guiados pelo medo.

A arte também não precisa oferecer saídas. Pode ser escapista, ou oferecer aquele tão necessário abraço quentinho a quem está com medo.

Pensando em futuros possíveis

Eu e outros escritores mais à esquerda gostamos de brincar de “comunistas”, em parte para provocar uma direita cega que usa “a ameaça comunista” como argumento para manipular o medo, já explicado acima.

Mas a verdade é que não acredito em nenhum sistema que tente resolver problemas complexos e emergentes com canetadas simplórias. O capitalismo tem seus problemas (o mais óbvio o acúmulo de capital na mão de poucos), mas é um sistema relativamente autorregulado por oferta e demanda.

Mas um capitalismo capaz de promover uma sociedade mais justa e igualitária requer um governo forte para frear as distorções causadas pela desigualdade de capital e poder.

Países como Dinamarca e Noruega são capitalistas com um estado de bem-estar social extenso. Se isso existe, por que é tão difícil imaginar? (“Ah, não funcionaria no Brasil”, dizem, mas só porque a elite econômica não quer, e o governo está na mão dela. Não tem nada a ver com tamanho do país, nível de educação ou qualquer outra baboseira. Cabe um porém, que esses países conseguem isso, em parte, terceirizando problemas (como produção de componentes) para outros países.)

Estava para entrar aqui na questões de que interesse público se sobrepõe à propriedade privada e saúde pública é mais importante que direito ao lucro, mas percebo que divago novamente. Esse assunto me dá nos nervos.

Em vez disso, vou brincar de futurologia:

Um futuro possível?

De maneira simplória, temos duas saídas para a crise. Em uma delas as coisas continuam mais ou menos como estão, o governo ajuda aos bancos e grandes empresas, enquanto o degrau social aumenta a ponto de colapso, e temos o caos tomando conta do país.

A elite do país está com medo e sabe que se o sistema cair, as suas cabeças são as primeiras a rolar. Pela primeira vez em muito tempo podemos ter a classe política unida em torno de ações para resolver a crise.

O primeiro movimento é a tentativa de autogolpe, quando o presidente anuncia em rede nacional o fechamento do Congresso. Assim que deixa a sala de onde fez o pronunciamento, o vice-presidente e ministro da Defesa o esperam com trinta soldados. Num acordo de cavalheiros, o presidente renuncia ao posto para não ser preso.

O vice sabe o abacaxi de país que tem nas mãos. Por isso faz o contrário do predecessor e se cerca de especialistas, então, uma série de movimentos simples se mostram revolucionários.

Um imposto sobre grandes fortunas é criado, mas o texto abre uma brecha interessante: em vez de pagar ao Estado, os detentores de grandes somas podem direcionar o dinheiro diretamente para comunidades por meio de bancos populares e pequenos empréstimos de até 75 mil reais, com perdão da dívida caso o negócio financiado não vingue.

O programa de renda básica universal é aprovado para acelerar a retomada da economia. Meio salário mínimo, não é muito. Mas é o suficiente para não passar fome. Confecções e redes de fast-food são as primeiras a sentir o impacto da medida. Há vagas, mas não trabalhadores interessados.

Com isso, as grandes redes investem pesado em automatização. Quiosques de sorvetinho automáticos cobram por meio de um aplicativo no celular. Automação se torna uma área ainda mais valorizada. Trabalhar no McDonald’s se torna motivo de orgulho, como se fosse Google ou Apple. Afinal, só os melhores conseguem fazer uma hamburgueira rodar sem enrosco.

Metade das redes de franquias alimentícias decreta falência. Vemos uma explosão de pequenas hamburguerias caseiras, padarias artesanais, salões de estética, food-trucks veganos, floristas especializados em arranjos e centros esportivos a céu aberto.

Visitar um shopping se torna uma experiência completamente diferente em cada cidade. Claro, há as grandes redes, onipresentes em metade do espaço. Na maioria delas você faz a sua compra sem precisar falar com um único ser humano.

Mas há alfaiatarias populares e lojas que imprimem o seu tênis na hora, onde você conversa com o designer e explica exatamente como você quer o seu pisante. E galerias de arte, cinco ou seis, sempre especializadas.

Muitas fábricas decretam falência. No dia seguinte, são compradas dos ex-donos por cooperativas de trabalhadores, financiadas pelo BNDS. Do faxineiro até o supervisor geral, cada um é um pouco dono do chão onde produz. Os ajustes de políticas salariais e responsabilidades demoram, mas a experiência dá certo. Acadêmicos se digladiam para definir se isso é comunismo ou capitalismo, até aceitarem o termo “capitalismo comunitário”.

“Gig economy”, tais como Uber, iFood e afins têm um crescimento exponencial num primeiro momento. Mas com a renda básica garantida, os trabalhadores passam a fazer menos horas, e escolher melhor para quais aplicativos trabalhar, o que reduz as margens de lucro lá em cima, e redistribuem o dinheiro para baixo. Quando Uber encerra a operação no Brasil alguns anos depois da crise, o mercado está tomado de pequenas cooperativas de motoristas, integradas por aplicativos abertos.

Com o efeito devastador do Coronavirus nos hospitais brasileiros, o SUS encerra 2021 completamente quebrado. Para salvar o sistema de saúde, o governo atua em duas frentes:

Primeiro, com a construção massiva de clínicas e hospitais no Brasil inteiro. Especialistas alertam sobre possíveis mutações do Covid que podem torná-lo mais letal e imune às vacinas, o que faz com que o país amplie a capacidade de atendimento, enquanto emprega muita gente no setor de construção.

A segunda frente é fiscal. Após a escolha polêmica do ex-presidente de um banco como ministro da Saúde, a primeira atitude é cobrar as dívidas milionárias dos planos de saúde particulares com o SUS. A maioria dos planos quebra.

Com isso, a Unimed é integrada ao SUS, ampliando da noite para o dia a capacidade da rede. O acordo é polêmico, pois ainda requer um pequeno pagamento por consulta, mas a população aprova.

A classe média não é mais capaz de pagar por escolas particulares, e não há escolas o suficiente para todos os alunos. A rede pública de ensino é expandida, e os novos prédios públicos são construídos menos semelhantes a presídios e mais inspirados em centros comunitários. Escolas se tornam espaços mais vivos, com bibliotecas públicas, quadras poliesportivas abertas no fim de semana e centros de uso múltiplo, com galerias, cursos e maker-labs.

A gente precisa lembrar que o futuro ainda não está escrito.

Confesso que fui otimista demais. Mas é um futuro que funciona dentro do modelo capitalista, apenas com maior investimento do Estado e mais mecanismos de redistribuição de renda.

No fim, o futuro nunca é otimista nem pessimista como imaginamos. Geralmente vai por um caminho do meio, com melhoras de um lado, pioras de outro. Não é difícil imaginar o pior. Fica aqui minha oferta de um futuro brilhante, talvez possível, por que não?

Cabe a nós, escritores, artistas, humanos dotados de imaginação, pensar outros futuros possíveis.

Um agradecimento especial à Jana Bianchi e Fernanda Castro pela leitura prévia e bons apontamentos ao texto. 

Frase do dia: Em que tipo de sociedade você quer viver?

Foto: Jachan DeVol / Unsplash

Publicado em Pensamentos no dia 5 de abril de 2020

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