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News #44: Como lidar?

Estamos caminhando para uma segunda-feira de ressaca brava, e para quatro anos (quatro? mais? quem sabe?) difíceis pela frente.

Venho nos últimos meses repetindo como um mantra a frase “como lidar”? Tentando inutilmente separar a histeria da preocupação, o fato da mentira, encontrar algum sentido nisso tudo. Então acabei colecionando alguns links que, se não dão uma resposta pronta, ao menos ajudam a encontrar sua própria.

Porque veja, eu tenho uma filha de dois anos, e um outro bebê a caminho. Todo pai e mãe tem a obrigação profissional de ser otimista, ou no mínimo esperançoso. Minha filha nasceu no ano do golpe e meu pequeno virá em um 2019 caótico, porque, sejamos realistas, não vai ser nada diferente disso, seja lá quem ganhe as eleições.

Eu quero que meus filhos cresçam em um Brasil menos misógino. Em um país que abrace todas as formas de amor. Com pessoas capazes de se entender em suas diferenças, e enxerguem nelas a beleza desse mundo.

Só que o cotidiano parece querer passar a perna dia após dia, e notícias terríveis e assustadoras entram em casa sem bater. E o pior, vemos nosso vizinho, nosso vizinho, irmão, batendo palmas para a barbárie. Como lidar?

Muito se falou nos últimos meses de como a mídia trata Bolsonaro e Haddad como “males diferentes” para o país, num falso paralelo. Enquanto o primeiro diversas vezes fez ameaças à democracia, elogiou um dos piores torturadores do período da ditadura e repercutiu discursos de ódio de boca cheia, o segundo é de um partido que (embora também tenha problemas e mereça sérias críticas) sempre jogou o jogo democrático, e prega o diálogo entre as partes.

Não há paralelo. Mas eu não precisava escrever o parágrafo acima, pois imagino que você concorda comigo. E esse talvez seja o maior problema. Estamos dentro da nossa bolha, conversando só com quem concorda com a gente.

Mas não, não estou pedindo que você vá para a linha de frente brigar com os minions. Não se acalma um cão raivoso e faminto numa conversa. Primeiro você o alimenta.

Só que em vez de alimentar as aspirações da sociedade, a mídia, a esquerda, a direita, as redes sociais, e, bem, todo mundo, só jogou cada vez mais sal, e deu no que deu.

Ainda que as ameaças sejam reais, a gente não vai conseguir nada com histeria. Só que, de repente, parece que se você não está gritando, está errado.

Então, como lidar?

“Aquele que não pode ser nomeado”, “coiso”, “bozo”, embora divertido num primeiro momento, só ajuda a aumentar a aura de entidade maléfica. Jair Bolsonaro é só um homem. E um homem fraco, covarde, ainda por cima. Homens podem ser derrotados.

Como já comentei em newsletters anteriores, saí de vez das redes sociais. Isso significa que meu contato com o furor das eleições é indireto. A gente tem que lembrar que o algoritmo vai alimentar o que é pior em nós, e sempre empurrar para o lado mais extremo, seja qual for a sua opinião. Se você odeia o Haddad, a rede vai te mostrar os terríveis males do PT. Se você odeia o Bolsonaro, olha aqui um vídeo de um apoiador atirando num cachorro. O resultado são as tais bolhas. A gente perdeu a capacidade de argumentar, de conversar. Todo mundo cachorro faminto.

E neste momento tenho vontade de encerrar por aqui, pois vejo que este texto não vai agradar a nenhum dos lados. Esposa perguntou “por que se dar ao trabalho?” Porque eu preciso escrever. É o que me resta.

Talvez a gente tenha quebrado a sociedade e agora estejamos olhando para todas aquelas peças em cima da mesa tentando imaginar como parafusar tudo isso de volta.

Mas a gente não vai conseguir montar de novo só com metade das peças (governos autoritários já tentaram isso). Vai ser necessário olhar para o outro lado.

Neste momento, significa enxergar que parte dos eleitores do Bolsonaro fecham os olhos aos seus defeitos porque acreditam mesmo naquela pataquada de revistas que chegam às bancas toda semana dizendo que o plano do Haddad é fazer do Brasil a nova Venezuela (oi?).

Ou que as pessoas acreditam mesmo na tal trickle-down economics, que por aqui ganha termos como “crescer o bolo antes de distribuir”, que só favorece ricos e poderosos e aumenta o degrau social.

Significa dar um voto de boa fé a quem enche a boca para falar de “meritocracia”, sem jamais ter ouvido sobre “igualdade e equidade”, ou “igualdade de oportunidades”.

Porque a outra opção é assumir que todo mundo que discorda de mim é um idiota.

Como lidar?

Eu não tenho a resposta para você. Estou tentando encontrar a minha.

E ela não é a que você quer ouvir. Sou pessimista a curto prazo e otimista lá pra frente. Sim,  estamos entrando novamente em uma fase terrível para o Brasil, flertando com o fascismo, e não tem muita coisa que a gente possa fazer de verdade sobre isso.

Mas fascismos já ergueram e caíram. A gente vai derrotar este também. O que me prepara para os dias vindouros é minha fé. Não falo muito de religião por aqui, mas acredito que a nossa passagem pela Terra não é única, e que a gente vai continuar voltando para cá enquanto não aprendermos a ser melhores.

Cada um acredita no que quer. Há até quem diga que religiões são ficções. Mas em momentos como este a gente vai precisar de toda ficção possível.

Como lidar?

Há resistência no cotidiano, em insistir em viver, e teimar ser feliz apesar de todos os medíocres que tentam impedir isso a todo custo.

Há resistência no movimento de naturalização das diferenças. Enquanto eles tentam pintar como “outro”, vamos mostrar como um de nós. Na vida, mas também na ficção. Escrever casais gays felizes, onde a vida é boa, pessoas negras que não sofrem racismo, mostrar o outro mundo possível.

Ficção é resistência. Livros são perigosos porque se recusam a compactar ideias em uma frase de caixa alta no Whatts. Livros plantam ideias. Livros mostram que o mal pode ser derrotado, que pessoas são complexas, ricas, um universo todo a ser descoberto. E livros mostram que muitas vezes a gente erra.

Nem toda ficção precisa ser resistência. Um livro pode ser um necessário cobertor num dia frio. Um chocolate gostoso para recarregar as energias para enfrentar o dia a dia.

Autopreservação não é covardia.

Volto aos meus filhos. Já comentei que o principal efeito de ter saído das redes sociais foi ter sentido minha importância desinflar como um balão furado. Eu não vou mudar o outro. Mas posso ensinar valores a meus filhos. A enxergar a beleza em toda forma de amor. A dialogar usando comunicação não violenta.

E, bem, se o mundo for destruído mesmo, alguém vai ter que replantar as flores.

Nando Reis escreveu uma música sobre este ano, ela é linda e você deveria ouvir, o link está ali embaixo. Com uma batidinha gostosa, Nando canta oito minutos dos males do país e do mundo na real, sem meias palavras, marcando cada outra estrofe com “Mas eu ainda tenho meu rock ‘n’ roll”. E encerra assim:

O mundo não é mais o mesmo em que eu nasci
Mas eu continuo curando a tristeza
Com a beleza de uma canção
Por isso eu ainda canto meu rock ‘n’ roll
Eu ainda canto meu rock ‘n’ roll

Acho que é por aí: nós vamos precisar de luz. Muita luz. Sabe o lance de tentar ser a luz que queremos ver no mundo? Ou, nas palavras de Edith Wharton, “há duas maneiras de espalhar a luz: ser a vela ou o espelho que a reflete”.

Eu não sei você, mas eu gosto muito desse segundo conceito. Eu sou só um cara branco cheio de privilégios sentado em um computador. Mas eu posso (por meio da Trasgo, ou esta newsletter, por exemplo) espalhar a palavra de pessoas mais iluminadas que eu. E continuar com o meu rock ‘n’ roll.

É pouco, mas é minha luta.

Espero que você também consiga encontrar a sua. Vamos precisar de todo mundo.

Muito amor,
Rodrigo van Kampen

Se você responder a este e-mail, ele cai na minha caixa, então fique à vontade! 😉

Abaixo, alguns links que eu acho que podem ajudar.


* Links para tempos brutos *

Rock ‘n’ Roll – Nando Reis :

Nós e a arte degenerada. – Eric Novello : O fascismo brasileiro é a revanche do medíocre. Gentinha medíocre que viu espaços sendo ocupados por gente talentosa em múltiplas áreas, gente que não era necessariamente um reflexo exato de sua cor, sexualidade, religião, etnia, da tal da ideologia. Gentinha medíocre e recalcada que percebeu, tomando doses cavalares de analgésico para conter a dor de cotovelo, que antigos estratagemas como racismo, misoginia e homofobia não estavam mais dando conta de conter “o outro”, que seu lugar sob os holofotes (ilusório ou não) teria que ser dividido e ninguém quer dividir poder (ilusório ou não).

Como resistir em tempos brutos – Eliane Brum : Jamais se esqueçam que a primeira vitória da opressão é sobre a subjetividade. É o que faz uma mulher cotidianamente espancada ficar calada. Ou uma mulher estuprada não denunciar o estuprador. Há algo que a amarra por dentro. É como se perdesse a voz mesmo tendo voz, perdesse a força mesmo tendo força. Esse é o efeito de ser violentada ou violentado. Vi muita gente assim no final da campanha de primeiro turno, vivendo a campanha violenta de Bolsonaro e de seus apoiadores como uma violência sobre o próprio corpo, sobre sua mente e sobre seu espírito. Mulheres, principalmente, mas também homens.

A history of happiness explains why capitalism makes us feel empty inside – Sean Illing : A new book entitled The Happiness Fantasy by Carl Cederström, a business professor at Stockholm University, traces our current conception of happiness to its roots in modern psychiatry and the so-called Beat generation of the ‘50s and ‘60s. He argues that the values of the countercultural movement — liberation, freedom, and authenticity — were co-opted by corporations and advertisers, who used them to perpetuate a culture of consumption and production. And that hyper-individualistic culture actually makes us much less happy than we could be.

S.L. Huang: Let’s Also Write Our Joy – Sometimes we can answer that bleakness by writing our rage—which I fully, thoroughly encourage. But I also want to encourage everyone out there, everyone who writes, or reads, or reviews… goddammit, let’s also write our joy. Claim it, celebrate it, blow it into the book marketplace for everyone else to escape into also. Don’t let the abusers in power take that away from us, too.

Be the light or reflect it – Austin Kleon : You don’t have to have your own light. You can reflect someone else’s. That’s what I’m doing, here, and elsewhere: I’m trying to find the light and reflect it. I’m trying to be a reflector, not Human Vantablack.

Dignity is delicate – Remy Debes : Incidents like the ones in Austria, Northern Ireland and Chicago contradict the contemporary Western dogma to treat every individual in a way that acknowledges his or her worth as a human being, regardless of their port of departure. And yet, this dogma is delicate. Not just because human dignity seems presently jeopardised by some kind of ‘Trump effect’, or even by some broader reawakening of authoritarian sympathies across the Western world. No: the very concept of human dignity is tenuous.

Powerful Courageousness: Practices to Expand Yourself & Your Gift – Leo Babauta : Imagine a woman who has a powerful gift to give to the world, a song to sing that will lift others up … but she only lets herself give that gift when the sun is shining and she’s happy and the moon is in perfect alignment with Jupiter.

The Japanese Man Who Saved 6,000 Jews With His Handwriting – David Wolpe : A second characteristic of such heroes and heroines, as the psychologist Philip Zimbardo writes, is “that the very same situations that inflame the hostile imagination in some people, making them villains, can also instill the heroic imagination in other people, prompting them to perform heroic deeds.” While the world around him disregarded the plight of the Jews, Sugihara was unable to ignore their desperation.

O jornalismo não vai nos salvar do WhatsApp – Maria Carolina Santos : Logo, logo, os editores perceberam: é muita coisa pra se competir. Tem o post da vizinha, da mãe, tem os gatinhos, os cachorros. O jornalismo se tornou um outdoor. E, para deixar a grama mais verde, se ia ao limite da verdade — por vezes, além. Sensacionalismo, que chamam, né?

O vírus está na linguagem – Aline Valek : Se querem interditar o debate e o diálogo, é porque as ideias nocivas que foram plantadas e alimentadas na mente das pessoas podem ser combatidas dessa forma. Talvez seja possível uma reversão. Se o vírus se espalhou pela linguagem, a cura também está na linguagem. Precisaremos das palavras mais do que nunca.

Mentirinhas (Fábio Coala):


 Talvez você tenha reparado que não há contos recomendados aqui. Em vez disso, quero recomendar o livro “Aqui quem fala é da Terra”, coletânea de Halloween de estreia da editora Plutão, que participo com o conto “Balé de Almôndegas”, junto com autoras incríveis. Sério, olha esse time: Vitor Martins, Cirilo Lemos, Clara Madrigano, Jana Bianchi, Mayra Sigwalt, Bárbara Morais, Alliah e André Caniato.

O livro está em pré-venda na Amazon e onde mais se vendem ebooks.


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Frase do dia: "This is precisely the time when artists go to work. There is no time for despair, no place for self-pity, no need for silence, no room for fear. We speak, we write, we do language. That is how civilizations heal."
"Este é precisamente a hora que os artistas trabalham. Não há tempo para desânimo, não há lugar para autopiedade, não há necessidade de silêncio, não há espaço para medo. Nós falamos, nós escrevemos, nós fazemos linguagem. É assim que civilizações curam." (fonte).

Foto: Ação "existe amor em SP" (2012)

Publicado em Newsletter no dia 26 de outubro de 2018

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One Comment

  1. “Aquele que não pode ser nomeado”, “coiso”, “bozo”, embora divertido num primeiro momento, só ajuda a aumentar a aura de entidade maléfica. SIM, PELO AMOR DE DEUS, SIM! Estou repetindo isso a meses, primeira vez que ouço leio alguém falando a mesma coisa.

    Obrigada por esse texto, a gente precisa. Abs.

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