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O que está em jogo?

Eu posso perder meu emprego. E com a esposa grávida no oitavo mês, meu Deus! O que você faria na minha situação? Recusaria a proposta? É muito fácil dizer “eu jamais faria isso” com os boletos pagos, o pote de ração da cachorra cheio e um carro automático na garagem. Mas e se você estivesse na minha situação?

Olá, leitories querides do Viver da Escrita! Calma, meu emprego não está em jogo e os boletos estão pagos (a maioria deles, pelo menos). O começo aí em cima é ficcional, um pequeno truque que usei para trazer você até aqui. Provavelmente você viu a descrição acima no Facebook ou no Twitter, talvez tenha clicado em solidariedade. Não fiz por mal. Só queria exemplificar um erro comum que muites autories cometem, que fazem com que o texto seja abandonado pelo leitor ou rejeitado pela Trasgo.

Você precisa dizer o que está em jogo. Assim, de cara, atirado na sua testa. Quando você envia um conto para a Trasgo, eu vou ler os dois primeiros parágrafos. Se sua escrita é boa, você conquista uma página inteira. Se ao final dessa primeira página eu não souber qual o conflito, o “problema” do personagem ou da história, eu parto para a próxima. “Ah, mas isso é porque você tem muitos contos para avaliar”. E quem não tem?

Às vezes é preciso criar contexto para mostrar o que está em jogo. Se você não entender que o imperador galático está tentando conquistar o planeta Miga e que existe uma raça de formigas atômicas lutando contra um terceiro invasor de tamanduás hipersônicos que…

Muitas primeiras páginas são apenas construções de mundo e cenário. Há quem diga que você até pode fazer isso em romances, contos nunca. Acho que nem em romances. Já peguei muita coisa autopublicada que não me instigou a ir além da primeira página. Como não tenho tempo de sobra, parti para algo mais interessante.

Você não precisa me explicar o contexto no começo. O cenário vai enriquecendo conforme avançamos a leitura. Se você sair explicando o contexto, vai ganhar um enorme “tá, e daí? Dane-se o imperador galático. Por que eu me importo com as formigas atômicas? Elas que se virem com os tamanduás não-sei-o-que-lá.”

Vai, me dá um personagem. Alguma coisa para sentir.

Sim, sentir. Ou você acha que emoção é algo que deve ficar reservado ao clímax lá na página 269? Nope. No começo você não precisa de conflitos complexos, de tramas mirabolantes, de backflips literários. Algo simples, básico. Algo que apele aos nossos instintos. Uma mãe procurando um filho. Um rapaz na expectativa de encontrar a menina. Um pai prestes a perder tudo. Um desejo de vingança.

Mostre isso lá no comecinho, no primeiro parágrafo. Se possível na primeira linha, num Gregor Samsa acordando transformado num inseto horroroso. Às vezes você pode até abrir mão da regra de ouro “mostre não conte”. Você tem pouco tempo, precisa agarrar o leitor pelo colarinho. Vale trapacear, então conte. Pronto, fisgou, agora você mostra, começa a desenvolver a história.

“Mas minha história precisa mesmo de um bom panorama até você entender o conflito principal.”

Eu vou dizer que se esse conflito não se relacionar com alguma emoção básica, grande chance da sua história ser meio tediosa. As boas obras são aquelas que dialogam tanto com nossa inteligência quanto com a nossa emoção, sem privilegiar ou menosprezar qualquer uma das duas.

Mas existe um truque que você pode tirar da caixa de ferramentas, utilizado em praticamente todos os episódios dos Simpsons, que vou chamar de “conflito-degrau”. Você quer escrever sobre a guerra entre dois mundos, mas você não começa a história com o general, você começa a história com a mãe dizendo adeus ao filho que vai para a guerra. Ou o seu degrau pode ser diferente da trama principal.

O rapaz está tentando conquistar a mocinha. Hoje é o grande dia, ele comprou flores. Você descreve a sua ansiedade e aproveita esses três primeiros parágrafos para apresentar o seu mundo pelos detalhes, de maneira sutil. Nós já temos um conflito aí, e de repente, BAM! Os alienígenas invadem. Aí você já tem duas camadas de conflito, uma interna ao personagem e outra externa, olha a vantagem.

Algumas autoras conseguem conquistar pelo texto. Apresentar uma situação curiosa, ou uma reação estranha a uma situação comum. Você não precisa apresentar literalmente o que está em jogo, você pode ser sutil.

É só isso que eu quero que você me responda no primeiro parágrafo: por que eu devo me importar com a sua narrativa, com o seu personagem? Quero saber o que está em jogo. Quero a promessa de uma boa história.

Frase do dia: Gregório ignorou o monstro que vivia em seu espelho, o terremoto que destruíra metade da sua casa e o demônio de dez metros de altura no jardim. Nada estragaria aquele dia especial.

Foto: Kurayba via Compfight cc

Publicado em Literatura Redação no dia 23 de agosto de 2016

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One Comment

  1. erica erica

    Gregório está certíssimo!

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