Skip to content →

O que pensam os editores de FFC no Brasil

Ou “O que aprendi nos bastidores do processo de seleção da Mafagafo”.

Sou um dos editores convidados para a próxima temporada de publicação da revista Mafagafo, capitaneada pela querida Jana Bianchi. Dentre as atribuições estava a escolha dos contos, trabalho que em inglês se chama “slush reading”; expressão que não conheço paralelo em português, mas podemos chamar de “leitura da pilha”.

O trabalho consistiu em filtrar os cento e quarenta contos recebidos na primeira fase, cada um com pitch, resumo e início, para escolher quais vamos pedir o texto completo. Participaram da empreitada editores de young adult, fantasia e ficção científica, de diversos perfis: que trabalham em editoras grandes e pequenas, independentes, freelancers, entre outros.

Como os comentários sobre os contos eram abertos e compartilhados entre a equipe, cá estou para contar o que pensam os editores de FFC no Brasil.

Quando uma autora está participando de uma concorrência dessas, cada detalhe conta. Uma coisa é você ler um conto publicado, que passou por seleção e edição: você está disposto a atropelar um começo meio confuso porque isso provavelmente é importante para a trama. Outra é, depois de vinte contos ruins, pegar aquele vigésimo primeiro já cansado porque precisa acabar logo com isso. O cenário raramente está favorável ao seu texto.

O que nos leva ao primeiro tópico:

Todo mundo deixa para a última hora. Suas chances aumentam se você não fizer isso

Eu pensava que eram apenas os editores da Trasgo que mergulhavam no trabalho só no fim do prazo, mas não. Tirando um e outro mais responsável, a maioria leu uns vinte nas primeiras semanas e todo o resto na última. O resultado disso? Editores de mal humor sem boa vontade para textos que não cativam.

Do lado das submissões, também aconteceu algo parecido. Mais da metade dos contos vieram nos últimos cinco dias. E a maioria leu os contos na ordem dos envios. Como nós tínhamos a missão de escolher cerca de vinte contos, as últimas leituras foram mais apressadas e receberam menos comentários, era aquela olhadinha marota só para ver se não deixamos passar alguma coisa realmente incrível mais para o final da lista.

Ou seja, suas chances aumentam se você mandar o seu conto até a metade do prazo.

Brasileiro não sabe escrever pitch

De todos os contos, somente quatro me interessaram pelo pitch e um deles já ganhou aprovação imediata pelo conjunto ótimo pitch + ótimo título. Mas, de modo geral, a impressão que deu é que o pitch foi escrito na hora da inscrição, sem muito cuidado.

Num processo desses, o pitch é o primeiro contato do editor com o seu trabalho, e já separa profissionais de amadores. Em certo ponto passei a aceitar que os pitchs estavam inutilizáveis e passei a pular direto para o resumo, mas outra editora rejeitou quase tudo pelo pitch.

Agora que tem muita editora filtrando pelo danado, preciso escrever um tutorial do que faz um bom pitch.

Ainda tem muito HOMIBRANCO escrevendo fantasia e ficção científica, mas estamos melhorando

Textos com pouca representatividade feminina (ou pior, uso de tropos negativos) também deram as caras. Além de problemáticos, demonstram uma falta de alinhamento do escritor com as discussões e debates contemporâneos do gênero. Também senti falta de mais conteúdo que trabalhasse cultura indígena, africana, asiática, entre outras. Na fantasia predomina o eurocentrismo, na ficção científica a cultura norte-americana.

Mas claro que isso não é um problema da Mafagafo, acontece em todo processo, até mesmo nos gringos.

Por outro lado, tivemos um bom número de texto com temáticas ou personagens LGBTQ (ainda que alguns com probleminhas). Também me chamou a atenção como o pessoal está um pouco mais solto para usar a cultura, costumes e locais brasileiros no texto. Sempre dá para ir além, mas é um começo e um caminho.

Domínio do texto é diferencial ENORME

Como pitch não nos levava muito longe, o início do conto se tornou o critério definitivo. Ali é possível ver quem tem domínio do texto, e quem ainda tem que comer arroz e feijão. Alguns contos tinham o texto tão fluido e gostoso de ler que ganharam vários votos positivos.

Por “domínio do texto”, entenda como conjunto de técnicas para tornar a leitura mais gostosa: ritmo, escolha das palavras, fraseado, controle do sentimento que se deseja despertar do leitor em cada cena, construção de cenas, adverbiação concisa, vozes únicas nas personagens, diálogos cativantes que movem a trama, enfim.

Aprender a dominar do texto é uma das partes mais difíceis da labuta, mas com maior retorno. Sim, vai ter copydesk depois, mas nenhuma editora está afim de reescrever o seu texto para você.

Conheça os editores e seus trabalhos

A Jana Bianchi conseguiu reunir um time incrível de pessoas diferentes que editam ficção científica no Brasil, estão no mercado, publicam, discutem. Não é tão difícil saber que tipo de história cativa mais uma ou outra. Um comentário bastante comum lá na planilha era “não é para mim”, ou “eu não sou a melhor pessoa para editar isso”.

Só pelos aprovados daria para sacar de quem era aquela lista. Editores são pessoas humanas, a gente gosta de ler fantasia e ficção científica sim, mas este é um leque enorme. Há quem prefira policial, young adult, transhumanismo, navinha, horror, terror, pirataria, alta fantasia, guerra, enfim. Alguns contos ganhavam muitos pontos só por trabalharem temas caros à equipe de avaliação.

Não que você vá escrever especificamente o que tal editor gosta de trabalhar, mas ao escolher para onde mandar o seu conto, ou para quem buscar uma leitura crítica especializada, vale sim conhecer o mercado para encontrar aquele que vai olhar com mais carinho.

Porque às vezes a gente encontra uma história que parece que foi enviada pelos deuses para cair na nossa mão, uma com potencial para ser o melhor conto do mundo só com um ajustezinho. Quando ela vem de alguém desconhecido ou começando a carreira, então! O calafrio de VOCÊ PRECISA LER ISSO QUE EU ESTOU EDITANDO é o que nos move por esta carreira caótica.

Falta leitura contemporânea. Falta leitura brasileira. Falta leitura

Parece que todo mundo quer escrever e ser publicado, mas ninguém quer ler o que tem saído por aí. Editores são pessoas que lêem um volume absurdo de coisas, tanto profissionalmente como por lazer. É aquele tipo que não tira o Kindle de dentro da mochila, está sempre com um, ou dois, ou quatro livros começados pela casa.

O Daniel Lameira foi o editor mais sucinto em seus comentários, já que metade deles se resumia a uma palavra: “genérico”. Genérico (ou “derivativo”) é aquele conto que não traz nada novo, um pastiche das referências que estão aí na superfície. O tal clichê.

Nos meus tempos de moleque eu gostava muito do jogo “The Secret of Monkey Island”, onde você controlava um aprendiz de pirata rumo à tal ilha do título. Uma das sacadas mais geniais eram as lutas entre piratas: uma troca de xingamentos, com tiradas e contratiradas. Nas primeiras você sempre perdia, mas quanto mais lutava, mais criava repertório para vencer os piratas com a língua mais afiada.

É muito claro como falta repertório. Contos com tropos e discussões que flertam com os clássicos de cada gênero, aqueles que você não precisa nem gostar de ler para conhecer, basta uma olhada superficial na cultura pop. A literatura contemporânea de ficção científica e fantasia já construiu edifícios enormes muito além dos tropos clássicos, de explodir a cabeça no que tem saído mais recentemente. Dá para ir além.

Falta leitura para absorver o tal domínio do texto, nem que seja por osmose. Assim como assistir muitos filmes treina o olhar do diretor de cinema, não dá para escrever sem uma carga muito grande de leitura. Já ouvi até “escritor” dizendo que não gosta muito de ler… Mas hein? Carreira errada, filhão.

E falta literatura contemporânea. A maioria dos editores lêem em inglês, alguns trabalham com tradução, e estão sempre pescando o que há de mais novo por aí. Mas você não precisa ler em inglês. Nem a mesma coisa que a gente. E, quer saber, ninguém lê as mesmas coisas. É a combinação única e exclusiva de tudo o que a gente lê, aliado o que a gente coloca no texto, que torna o nosso conto único. Se você só lê o que todo mundo está lendo, você vai escrever o que todo mundo está escrevendo.

E tem a Trasgo, a Mafagafo, a Faísca, além de muita coisa estrangeira de primeira que tem chegado em português também. Essas de cima são gratuitas, não tem nem desculpa da grana.

Editores não são malvados, a gente adora encontrar sangue novo material novo. Mas o pessoal também precisa fazer a lição de casa se quiser ser publicado.

Porque se você quer ser um pirata de verdade uma hora você precisa começar a inventar suas próprias tiradas.

Frase do dia: Look behind you, a three headed monkey!

Foto: Capa da primeira Mafagafo, por Bruno Muller

Publicado em Literatura no dia 19 de setembro de 2019

Estou reativando a newsletter do Viver da Escrita. Se quiser receber textos como esse no seu e-mail, basta colocá-lo aqui abaixo!

Receba a Newsletter do Viver da Escrita!

* indicates required

Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *